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O DOCE BORDADO AZUL - 15º CAPÍTULO

Todas as terças-feiras e quintas publicarei capítulos em sequência do romance "O doce bordado azul". A seguir o 15º capítulo.

Capítulo XV

A transformação de Laura

Laura agora sentia-se aliviada. A conversa com a filha lhe transmitia a segurança que sentia evadir muitas vezes, como se perdesse o controle sobre seus atos. Mas conversar com Lúcia, impor-lhe suas razões, tinha o poder de retomar aos poucos a segurança, talvez até a autoridade que mantinha sobre a filha, pois esta não conseguia encontrar qualquer falha em seu caráter que pudesse acusá-la.

Voltou ao bordado com sofreguidão, experimentando uma criatividade instantânea, uma necessidade de concluir o trabalho com urgência. Sua autoestima estava em alta. Lúcia, ao contrário, continuava desanimada com tudo que acontecera. Ela lhe dera dicas de como mudar a situação adversa, mas não fora ouvida. Pelo menos, por enquanto. Mais dia, menos dia, aos coisas mudariam e ela a obedeceria, pois era a única alternativa viável para os seus problemas. Durante aquela tarde, morrera para o mundo, enterrada em seu quarto, dopada com comprimidos, temerosa que estava de enfrentar os acontecimentos.

Laura a compreendia, embora não concordasse com as atitudes. Percebeu que o bordado tomava forma, o desenho desaparecia dando lugar a uma figura em alto relevo, uma espécie de rubrica numa língua eslava, que ela pesquisara numa resvista antiga, saltando das páginas de um livro que realçava no tecido de uma brancura quase purificada. Doía aos olhos o contraste, mas causava um enfoque estranho, que tocava os sentidos, como se a sensibilidade aflorasse de maneira irrefletida no conjunto, mesclada no tecido e no bordado. Laura percebeu que nada mais havia a retocar, nem uma linha, um nó, um arabesco solto ou outro detalhe que pudesse escapar-lhe ao olhar. Que nada! Tudo estava perfeito. Era uma obra-prima.

Largou-o ao seu lado, delicadamente, no braço da poltrona e permaneceu por um minuto a admirá-lo.

Depois, afastou-se lenta, mais lenta do que de costume, pois os seus pensamentos estavam inflando a mente, inundando-a de ideias e por isso arrastou os chinelos mais devagar, perdeu-os pelo caminho, torceu os dedos nos ladrilhos frios do corredor e chegou extenuada ao quarto.

Aproximou-se da cômoda antiga, de gavetas pesadas e procurou um objeto que sabia ser-lhe útil, naquele momento. Investigou a gaveta até o fundo, remexeu papéis, caixas de comprimidos, alguns óculos em desuso e hastes quebradas e parecia não encontrar o que procurava.

Então abriu outra gaveta e outra e outra até finalmente achar o objeto. Suspirou aliviada ao avistar ao fundo da quarta gaveta um pequena caixa de metal, puxou-a lá de dentro, meio desarticulada, deixando-a a cair, resvalando entre várias fitas, lãs, papéis velhos, amarelados, envelopes, maços de cartas e antigos enfeites de cabelos, que algum dia usara.

Conseguiu apanhar a pequena caixa e sentou-se na cama, ofegante, tentando descansar por alguns instantes. Abriu-a com cuidado e observou que não havia nada importante, a não ser um papel de seda e uma fita dourada para amarrar presentes. Na verdade, era isto mesmo que procurava.

Voltou para a sala, um pouco mais rápida do que viera até o quarto, encontrou os chinelos soltos nos ladrilhos, enfiou-os nos pés e dirigiu-se imediatamente a sua poltrona: parada definitiva de seus afazeres mais prazerosos. Pegou o bordado e dobrou-o com mimo. Embrulhou-o no papel de seda azul, passando a fita dourada em torno, de modo a mostrar um acabamento elegante, enlaçando vigorosamente e fechando o invólucro. Em seguida, acomodou-o na antiga caixa de metal. Depois, resmungou: – lembrei do número! – e passou a telefonar, impaciente.

Quando atenderam, ela marcou um encontro e de imediato, passou a tomar as providências para sair. Afastou-se de sua poltrona, dirigiu-se novamente ao quarto e começou um estranho processo de transformação.

Ajeitou algumas roupas que lhe caíam melhor. Nada muito exagerado, ao contrário, peças que ocultavam as imperfeições de seu corpo, embora de antemão soubesse que por mais que se esforçasse, as mazelas que a obesidade lhe ofertava não podiam ser dissipadas por um simples vestuário. Faziam parte de sua personalidade, chagas incorrigíveis que ela não pensava em mudar, embora naquele momento, preferisse atenuar.

Após um longo e demorado banho, surgiu com dificuldade em frente ao espelho. Sentia-se ridícula. Um saiote de gordura encobria-lhe totalmente a genitália. Os seios fartos, pendidos próximos ao abdômen, misturando-se às dobras das axilas, alternando-se no balanço dos passos, como se trocassem de lugar a cada movimento. Mesmo assim, encarou-se detidamente. Enxugou-se devagar, as pernas flácidas, atarracadas aos pés, davam a impressão que mergulhariam no piso, empurrando-a para baixo.

Sentou assim, molhada, na cama, enxugando-se como podia. Era quase um ritual, demorado, intenso, contraditório. Tanto se encantava com suas intenções criativas, como se decepcionava com o aviltamento de seu corpo, que dia a dia se ampliava em todas as direções. Às vezes, temia que não pudesse mais caminhar ou afastar-se do quarto e ficar eternamente naquela cama. Mas procurava afastar estes pensamentos lúgubres. Ainda não tinha chegado a este ponto, por isso não devia se preocupar. O que lhe interessava agora era o que estava por vir.

Finalmente enxugou os dedos dos pés, cujas unhas deformadas e encravadas na carne, doíam-lhe terrivelmente. Tinha de esquecê-las também. Passou devagar a toalha entre as pernas, e sentiu um leve rubor, um leve despertar, como um toque benfazejo de sensualidade. Mas não passou de um arroubo, não podia dar-se a estes caprichos. Não ela, com suas dificuldades, sua idade avançada, sua vida tão regrada e correta. Afastou rápida a toalha e passou-a pelas costas, puxando-a com ambas as mãos, de um lado para o outro, sentindo que as dobras do corpo se acomodavam no tecido, em movimentos leves, mas firmes, para evitar que permanecessem úmidas.

Depois secou os cabelos e aproximou o rosto ainda mais do espelho. Não era uma mulher feia, pensou. Talvez um pouco desleixada, sem grandes vaidades, sem importar-se com a estética, sem usar cremes hidratantes. Abominava qualquer tipo de produto que necessitasse de uma rotina. E depois, não tinha para quem embelezar-se. Secou os óculos de lentes grossas e hastes largas e escuras e observou-se melhor. Ainda não tinha lábios sumidos, como ficam a maioria das mulheres de sua idade, ou cingidas de pés-de-galinha. Pelo contrário, seus lábios eram carnudos e sua pele era lisa, quase esticada. Produto da gordura demasiada, mas que visto por este ângulo, atribuía-lhe algum privilégio.

Puxou os cabelos grisalhos para trás e começou a vestir-se. Tomou o sutiã, que deixara ao lado da calça de seda, levando os seios à caçapa, na pertinácia da sinuca, onde as bolas caem de uma só vez, mas se acomodam de acordo com o espaço que lhes é proporcionado. Ajeitou-se no bojo, insistentes em desandarem mesa à fora, acostumados a ficarem no tapete verde, sem qualquer iniciativa de jogada, dispersos e tranquilos nos lugares destinados. Ainda sentada, enfiou as calcinhas, que diminutivo tinham somente no nome, tão grandes precisavam ser para acomodar toda a desordem das nádegas e bolsas de gordura, cujo destino era se adaptarem no embrulho, embora vez que outra uma parte escapava pelo cós, esfregando-se ora na barriga, ora nas coxas, que colavam e feriam-se no caminhar farfalhado de pomada Minâncora.

Foi um processo demorado, ela, embora ofegante, prosseguia decidida.

Assim vestida como estava, apetrechou-se de uma caixa de maquiagem, examinando cada detalhe do rosto: as sobrancelhas grossas, com alguns fios brancos, um outro fio que nascia-lhe no queijo ou próximo ao nariz, uma espinha oculta, mas que lhe doía próxima à boca e mostrava um vermelhidão acentuado.

Nunca se olhara assim, tão detidamente. Tirou um pinça da caixa de maquiagem e passou a acertar as sobrancelhas, diminuí-la de tamanho, livrar-se dos fiapos inadvertidos, esconder o vermelho da espinha com uma base forte, e passar a desenhar os olhos, a boca, semelhante ao que faz com os bordados. Tinha a mão leve, cuidadosa. Acentuou a curvatura das sobrancelhas, delineou os olhos, abusou de sombras, rimel e batom e finalmente admirou profundamente o que viu: uma nova mulher. Uma mulher bem mais jovem e bonita. Vestiu a calça de seda, a blusa e calçou as sandalhas de salto médio. Olhou-se mais uma vez no espelho de corpo inteiro e até sorriu.

Dirigiu-se para a porta, como se tivesse vinte anos, sem cansaço, sem arrastar os pés ou caminhar lenta e desarticulada pelo corredor. Ao contrário, caminhava firme e resoluta, dirigindo-se para a sala, chegando até a poltrona e pegando a caixa de metal, com o bordado. Pegou a bolsa, olhou para os lados, como se quisesse justificar a saída. Mas não havia ninguém a que devesse qualquer explicação.

Abriu a porta da rua, fechou-a atrás de si e respirou ares novos.

************

Quando Laura chegou à porta do apartamento, assegurou-se se estava bem alinhada. A calça preta de seda compondo com a blusa branca, numa espécie de bata, aberta dos lados, produziam uma silhueta se não bem definida, pelo menos, mais discreta.

A porta se abriu e ela abriu-se num sorriso generoso, parecendo identificar na outra uma amiga muito íntima. A mulher que a atendia ofereceu um sorriso leve, na boca ressecada. A pele excessivamente pálida e magra salientava os olhos grandes e fundos. As mãos magras seguravam a porta, talvez esperando uma explicação ou necessitasse de tempo para permitir-lhe a entrada.

Laura insistiu no cumprimento, estendendo a mão roliça e úmida. Na mão esquerda, uma bolsa, na qual, entre outras coisas, trazia a pequena caixa de metal.

–Lembra-se? Eu liguei para você, que me deu o endereço e aceitou que eu viesse, por isso estou aqui.

Bárbara de súbito demonstrava lembrar o que acontecera. Esquivou-se indelicada, do aperto de mão, indicou-lhe a entrada e permaneceu fria, sem mover-se, a não ser ceder o espaço para a passagem de Laura.

Laura foi rápida, adiantando-se para o centro da peça e em seguida, dirigindo-se à janela que dava para uma série de telhados. Fez uma pequena observação: – é lindo aqui.

Bárbara refutou: – não é não. É um lugar feio, sem vida. Só telhados cheios de musgo.

Laura remendou o elogio, referindo-se apenas à luminosidade da sala. Achava que aquela janela era providencial. Bárbara calou-se. Esperou apenas que ela dissesse o motivo da visita e não insistiu que sentasse, mas Laura antecipou-se a qualquer presumível convite.

– Se não se importa, vou sentar aqui, neste divã.

– Sem objeção, se lhe fica confortável.

–Por favor, sente-se também. Gostaria muito de conversar com tranquilidade, se é que pode ouvir-me, se não tem outro compromisso.

Bárbara sentou-se num pufe, próximo à mesa, referindo-se a si mesma com certa amargura.

–Uma mulher como eu não tem compromissos. A não ser passar as horas olhando estes telhados sujos, musguentos, cheios de gatos saltando de uma casa para outra, de um terraço para outro, sem parar.

– É estranho como as coisas mudaram para você. Uma mulher tão cheia de atividades e de repente, assim, com a vida vazia, sem ter o que fazer, sem objetivos.

Bárbara levantou-se, foi até uma pequena estante e retirou rapidamente de um maço, um cigarro, enfiando-o nervosa, entre os lábios. Ainda em pé e acendendo-o com um isqueiro que tirava do bolso da calça de jeans, argumentou que precisava respeitar a sua necessidade. Tentaria fumar na janela, mas se ela tivesse algum problema com a fumaça, poderia dirigir-se à cozinha. Laura, ao contrário, demonstrava total despreocupação com os efeitos do cigarro. Que fumasse à vontade, não precisaria nem abrir a janela. Sua filha costuma fumar exageradamente.

Bárbara a olhava com desconfiança e ao mesmo tempo um fastio, um sentimento de vazio, que não lhe permitia qualquer curiosidade. Escudava-se na janela, olhando de vez em quando para os telhados.

Laura delicadamente abriu a bolsa e tirou a caixinha de metal, colocando-a ao seu lado, à espera de que Bárbara terminasse a última tragada e se aproximasse dela. Foi o que aconteceu. Sentou-se novamente, com os joelhos juntos e as mãos se contorcendo, uma na outra, numa espécie de ansiedade exacerbada.

Laura, então falou, com a voz mais suave que conseguiu articular.

–É um mimo que trouxe para você.

–Um presente?

– Considere assim. Afinal, você e Lúcia eram tão amigas.

Bárbara não manifestou qualquer gesto, incauta, angustiada. Laura entregou-lhe a caixa, a qual recebeu como um autômato, largando-a imediatamente sobre a mesa. Laura então sugeriu que a abrisse, tinha uma surpresa, que supunha ser agradável. Quando Bárbara concebeu um leve esticar de braço até a caixa, ela a impediu, segurando-lhe com delicadeza, o braço.

– Espere. Gostaria de explicar-lhe antes, para que não pareça para você um objeto qualquer. Lembra-se que sou uma ótima bordadeira?

Bárbara esforçou-se por lembrar alguma coisa, mas sua mente estava oca, como se o passado desaparecesse com a vida que levara para Minsk e que jamais recuperara. Então afirmou, sem qualquer sutileza.

–Não. Não lembro. Desculpe, não lembro de nada.

E levantou-se novamente, nervosa. Voltou a sentar-se, fitando-a, impaciente. Laura prosseguiu, ousada.

–Mas você me reconheceu ao telefone, não a minha voz, naturalmente, mas sabia que eu sou a mãe de Lúcia, que me chamo Laura.

Na verdade, Bárbara nem lembrava o seu nome, mas permanceu calada, apenas ouvindo-a. No telefone, dissera que era importante o assunto que teriam, mas até o presente momento, só vislumbrava rodeios. Por isso, perguntou: – a senhora quer um café? Uma água?

Laura concordou que um café cairia muito bem. Mas não precisava se preocupar com mesuras. O que tinha para falar-lhe não demoraria muito, uma ou duas palavras seria o suficiente e já estaria de saída.

Bárbara não insistiu. E Laura pediu uma água.

Enquanto a outra afastava-se, pode examinar detidamente a sala em que se encontrava. Era um apartamento muito simples. Uma estante velha, com alguns livros e fotos espalhadas entre os espaços, talvez tão antigos e usados quanto o divã em que estava sentada. A mesa, o pufe, uma caixa cheia de revistas, que pareciam ali jogadas, à espera de serem organizadas mais tarde. Pensou em Lúcia, o que estaria fazendo a esta hora. Certamente dormindo, como o fizera durante todo o dia. Para ela, a vida transcorria às ocultas, nas brumas densas dos pesadelos. Ouviu os passos de Bárbara, leves, lentos sobre o assoalho bem encerado e imaginou que ela estivesse de pantufas. Na verdade, eram apenas sandálias de salto baixo, com uma cordinha verde que lhe atava os tornozelos. Estendeu-lhe a mão, segurando o copo e sorvendo rapidamente a água, sentindo a garganta ressequida. Bárbara talvez quisesse fazer-lhe perguntas, mas sua mente deslizava entre o fazer e o deixar-se ficar sem perguntas, sem vontade, no limbo do pensamento. Laura, pediu novamente que sentasse a sua frente, liderando a situação insólita que se formava. O que se depreendia era que a qualquer momento, a panela de pressão não suportaria a carga, esparramando para todas as direções o conteúdo diversificado.

–Pois bem, eu fiz uma coisa simples, um bordado. Nada de especial, espero que você goste.

Bárbara então ensaiou um gesto de tomar a caixa da mesa e Laura prontamente a entregou, observando em decorrência o efeito que produzia em sua fisionomia. A caixa ia se abrindo e o pequeno invólucro enrolado no papel de seda era desatado, soltando a fita dourada sobre o colo. Aos poucos, o tecido foi se alinhando no colo e Bárbara, ainda sem ver o resultado do bordado, quase sussurrou um agradecimento.

–Por favor, continue.

As mãos magras, de dedos longos e finos ajeitaram o tecido sobre a mesa, estendendo-o para perceber o desenho. De repente, lágrimas brotaram de seus olhos fundos e ela não conteve um gesto de desespero, segurando firmemente o bordado, quase rasgando-o com as mãos e pronunciando uma palavra numa intensidade angustiada e sofrida. – Aliocha. Aliocha.

Laura sorria docemente e no sorriso, perguntava conhecendo de antemão a resposta : – era o nome dele, não é mesmo? O pequeno Aliocha. O grande Alexei!

–Por que? Com que intenção bordou isso para mim?

– Pensei que fosse gostar. Você o amava tanto!

– Mas é uma lembrança penosa, doída e só minha. Por que interfere assim nas minhas lembranças? Por que tão íntima, tão intrometida na minha vida?!

Laura silenciou por instantes. Depois, limpou a garganta e sua voz soou firme e forte.

– Por que intrometer-se na sua vida? Você não imagina? Porque você se intrometeu na vida de minha filha!

Bárbara ainda entre lágrimas, levanta-se. Frágil, coração dilacerado. Não entendia a atitude da outra. Deixou rápida, a caixa sobre a mesa. Voltou-se para os telhados, absorta.

Laura prosseguiu, obstinada.

– Ela estava quieta, no seu canto. Você voltou e como sempre aconteceu em toda a história das quatro, você foi a preferida. A graciosa, a elegante, fina. A que venceu na vida, a que realizou os seus sonhos. Agora voltou, arrogante, como sempre. E nem ao menos se interessou em conversar com Lúcia, em encontrá-la, em revê-la. Ficaram as três naquele convento idiota, você, Madalena e aquela freira maldita!

Bárbara a ouvia com a impressão de que estava dormindo, um sono agitado e cheio de pesadelos, onde a morte e o sofrimento se entrelaçavam num efeito gigantesco em seu ser. Com esforço quase brutal, pediu que saísse, que a deixasse em paz. Nada tinha a dizer, a falar de Lúcia, pouco se encontraram depois de sua partida. Nada significava agora.

– Agora ela não significa nada, mas muito a ajudou nas suas melancolias, na sua angústia permanente de ser uma interna do convento, de ser órfã, de não conhecer nenhum parente. Lúcia sempre esteve ao seu lado.

– Mas foi há muito tempo. Tudo isso passou...

–Mas você não acha que está sendo demasiadamente egoísta? Você não acha que lhe deve muito, que deve pelo menos, gratidão?

– Mas por que a senhora vive no passado? O que aconteceu com Lúcia?

Laura acomodou-se na poltrona e sorriu sarcástica.

–Aí é que está. Não aconteceu nada à Lúcia. Ou melhor, aconteceu: o passar do tempo. Ela envelheceu e está secando sozinha, sem vida própria, sem emprego, sem marido. Você, ao contrário, teve o seu brilho na vida. Você tornou-se uma grande bailarina, uma mulher famosa, casou-se, foi feliz.

– Fui feliz.

–Você tem lembranças. Lucia não as tem. Você tem passado. Lúcia não tem. Ela continua a mesma menina dependente de mim, vivendo as minhas custas, do meu suor, do meu trabalho, da minha mísera pensão.

– O que a senhora quer que eu faça?

–Uma coisa apenas, que não a abandone.Que não se afaste dela, que a ajude.

–Mas eu apenas atendi ao convite de Irmã Carlota para aquele encontro. Eu nem sabia que ela não estaria.

–Ela foi humilhada.

– Senhora ...Como é mesmo o seu nome? Laura, dona Laura, eu estou muito fragilizada com tudo que me aconteceu, não tenho cabeça para nada. Por favor, vá embora. Eu lhe prometo que conversarei com Lúcia, assim que estiver melhor.

– Uma migalha. Você vai lhe dar uma migalha. Mais uma vez demonstrará o seu alto grau de benevolência.

– Por favor, não tenho mais tempo para ouvi-la. Não quero mais ouvi-la.

Laura a olhava e nada ouvia, a não ser um abrir e fechar da boca, quase convulsante. Por um instante, teve a sensação que as agulhas do bordado estavam em suas mãos e por um breve momento, enfiou-as firmemente em sua boca, costurando-a num ponto de cruz e fechando-a definitivamente. Por isso, sorriu docemente. Levantou-se, pegou a bolsa e despediu-se com os olhos límpidos e um brilho de felicidade.

Bárbara esperou impassível que ela se afastasse e fechou a porta, mergulhando num sofrimento profundo. O bordado sobre o divã, o nome de Aliocha, as lembranças mais soturnas a acabrunhavam, como se carregasse um peso de cem quilos nos ombros. Deitou-se no divã, encolhendo as pernas e chorou compulsivamente.

***************

Laura caminhava suavemente pelas vielas estreitas, sentindo-se renovada.

Afastou-se tanto em tão pouco tempo, que admirou-se de sua agilidade. Em seguida, estava sentada no banco da praça, tomando avidamente uma água mineral. E assim, parada, teve a sensação de voltar ao passado e ver-se ainda pequena, segura na palma da mão, carregada pelo gesto firme da mãe. Via-a assim: de lenço estampado na cabeça, a testa encoberta pelo tecido fino. Uma blusa branca que lhe desenhava a silhueta magra e a saia rodada, de uma cor escura que se desmanchava num desenho estranho na barra. Aquele ar de imigrante, os esses portugueses acentuados, o andar rápido, decidido, atulhando-a de broa, bolacha Maria e mingau às 6 horas da manhã. Tinha uma secura na voz, uma frieza no olhar, um ar emotivo oculto, denso, saltando pelas narinas. Nada porém que a influenciasse beneficamente. A cada dia, tornava-se mais dura e exigente. Sentia-a quase como um carrasco, embora benevolente e doce. Um carrasco que cumpre a missão rotineira, que conhece a dor e até se penaliza do sofrimento.

Uma bola saltou ao seu lado, acordando-a para a realidade. Quando o menino correu ao encontro da bola, Laura lembrou-se que havia uma coisa muito importante a fazer naquele dia.

Respirou fundo, olhou para os lados se ambientando aos novos caminhos e levantou-se decidida, afastando-se em seguida.

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