Capítulo IV
Adágio
Naquele momento, nem o escasso sol em Minsk, produzia algum indício de esperança para Bárbara. Tão inóspita quanto o clima era a sua alma perturbada e triste. Voltar para casa sozinha, sem o aconchego do parceiro, trazia-lhe à alma um vazio urgente, que seus olhos revelavam, assim perdidos na vidraça do táxi. Registrada na retina, ainda alguns poucos amigos se despedindo, falando entre si a tragédia inesperada, um zum-zum dos alunos que se espalhava, vozes abafadas comentando num linguajar alterado e despretensioso, como se ela não pudesse decifrar. O pouco que conhecia da língua russa, permitia-lhe entender o que comentavam. Observou que o taxista falava sobre a proximidade do verão, mas não comentou nada. Deixou-se ficar quieta, quase imóvel. O homem a fitou pelo retrovisor e calou-se, também pensativo.
Quando chegou no quarteirão de apartamentos, acenou para o motorista, mostrando o terceiro prédio, onde se localizava uma rua estreita, cercada por um muro adjacente, contornando a trajetória dos demais blocos e indicando o caminho de volta. Pagou alguns rublos e desceu rápida, dirigindo-se à portaria. Subiu as escadas, agora devagar, cansando-se a cada degrau, como se não fosse bailarina, uma profissional de disciplina e resistência. Carregava consigo um fardo tão pesado, que custava-lhe sustentá-lo, como se fosse a qualquer momento, descambar escada abaixo. O peso da dor, do vazio, da sensação incômoda de perder o controle, a memória, talvez. Ao chegar na porta, retirou a chave da bolsa com as mãos trêmulas e frias, o girar inseguro na fechadura. O medo de não encontrar ninguém, a certeza de estar definitivamente só.
Abriu a porta devagar, tudo estava como deixara, até as revistas espalhadas pelo chão, alguns jornais do Brasil, documentos precipitados displicentes sobre a cama, o tempo exíguo, o coração em desalinho como a mente, o medo de enfrentar a morte. Não tomou nenhuma atitude, a não ser, sentar-se ali, olhando o quarto pequeno, as paredes velhas, carcomidas pela umidade, as manchas de bolor, a pintura desfeita.
Ao lado, bem perto, as mesmas pessoas desalojadas após o desastre de Chernobyl, já haviam restaurado as suas vidas, ansiosas e aflitas na expectativa de sobreviverem e continuar tocando o destino. Mas algo havia quebrado para sempre, fraturas à mostra, deixadas na alma sangrada pela dor, na tentativa do esquecimento. Não conseguiam. Ela conhecia de cor as suas velhas e eternas histórias, pois as repetiam constantemente, embora já passado mais de 7 anos do ocorrido. Era feliz, aos dezessete anos, morando no mesmo bairro, no mesmo prédio de apartamentos praticamente construídos para aquelas populações alijadas de sua vida normal, seu passado, suas fotografias antigas, sua história deixada num painel que jamais seria recuperado, envoltas na ruptura de suas perdas e tragédias. Eles vindos da Rússia para morar ali, em Minsk, na Bielorrúsia. Ela, radiante, com a bolsa de estudos que recebera para exercer a sua arte, no aprendizado diário que tinha sido a sua infância e adolescência, no caminho contínuo da persistência e segurança alcançada a cada passo, a cada movimento. Lembra, quando ingressara na Escola de balé e enfrentara os primeiros momentos de rigidez e disciplina. Havia tido dificuldade em relação à língua, embora soubesse fluentemente o inglês e imaginasse que aquela seria a sua segunda língua. Tivera que se adaptar, aprender o russo tradicional, falado em parte da população, bem como o bielorrusso, além de assimilar os seus costumes, seu modo de ver o mundo, inclusive, a maneira de como enfrentam as adversidades.
Mas um dia, conhecera Alexei e a semente da nova terra parecia brotar perene em sua vida. Nada mais era fugaz, nem transitório, tudo tinha uma finalidade, além da arte, da dança, da música, do balé. Era uma dança intensa de amor, permeada de gestos carinhosos e frases melodiosas. E por tanto tempo se enamoraram, e em tanto tempo se acostumaram juntos, que agora, após 13 anos não se sentia forte o suficiente para enfrentar a ausência, deflagrada numa armadilha de brilho de estrada escura, iluminada por faróis banhados de chuva.
Ficara assim, não sabe por quanto tempo, patética, olhos grudados no nada, esperando alguma coisa que talvez acontecesse: um recado, uma visita inesperada, um telefonema. Quem tinha ela no Brasil, a não ser as amigas do colégio interno, enquanto a maioria se afastava para as suas casas, ela, como órfã radicada no mosteiro, se habituara aos costumes severos das freiras.
Afinal, tão somente com elas se relacionara como parte do grupo, e aprendera a viver no comedimento, na compostura, na eterna disciplina, na falta de vaidade. A não ser o desejo ilimitado e inevitável da dança, incentivado apenas por uma delas, que tinha ideias inusitadas em relação às demais. Quem a procuraria agora, já que ela jamais pretendera encontrar alguém do passado, escondida em seu egoísmo de uma vida idealizada no amor e na arte. Quem haveria, além de umas poucas amigas, que já nem lembrava mais. Quem telefonaria? Quem chegaria para lhe dar os pêsames, a não ser os que já o tinham feito, como os seus alunos da academia de balé, alguns professores, e os parentes de Alexei, o Aliocha, como os pais o chamavam no diminutivo. Onde andaria a sua alma, tênue, brilhando no infinito, esmerando-se em ser melhor, descuidada de ser mais esperta e arguta. Onde andaria o seu Aliocha, tão inseguro na vida e seguro, forte e firme no amor.
Agora, nada lhe restava, assim como as lembranças dos russos de Chernobil, vindos para Minsk, afastados de sua realidade, sua vida, seu passado. Tal como eles, era uma desalojada e não tinha como voltar. A semente perene que estabelecera suas raízes no solo daquela pátria já não produzia frutos e os já produzidos, agora tornaram-se efêmeros e debilitados. E na sua pátria natal, também não tinha raízes que a fizessem voltar. Estava solta no ar, absorta, pernas frágeis, com pés em falso nos arames do circo.
Sua vida se esvaziara e ela pressentia o passo disforme, o salto sem rumo, a ponta da sapatilha em desequilíbrio. O movimento pausado, triste e lento do adágio em contraste com o allegro de dias anteriores, de noites anteriores, da vida anterior, onde a vivacidade preenchia o ar. Ficou o vácuo.
A campainha tocou, uma, duas vezes, várias. Bárbara não ouviu. Permanecia estática, imersa num mundo de devaneio, olhos pesados, cabeça pendida no colo, mãos soltas, quase abstratas. Não desistiram e o celular alertou a chegada. Mensagens que vinham. Pessoas que se interpunham entre seu estado de torpor e lassidão. O celular insistiu. Ela ergueu a cabeça, desencostou-se da cabeceira da cama, levantou-se para pegá-lo da mesinha ao lado. Investiu, tonta, contra a parede. Segurou-se como pode. Atendeu. A voz saiu sôfrega. Alguém, do lado de fora, falava num português sofrível, pedindo-lhe para abrir a porta.
Bárbara obedeceu. A mulher era uma espécie de zeladora dos prédios. Observava-a atônita, percorrendo com o olhar todo o seu corpo, como se pretendesse distinguir algum traço ainda imutável de sua figura. Mas parecia não encontrar nada. Abana a cabeça pequena, envolta num lenço vermelho atado ao pescoço, descontente com o que vê. Quando entra, examina o caos em que se encontra a sala. As cadeiras com roupas penduradas, como um varal com peças para secar, na mesa, caixas com documentos espalhados, vidros de comprimidos abertos, garrafas de bebidas. Ao canto da sala, sobre o parquê encerado, uma tv antiga, eternamente ligada, numa imagem disforme e sem som. Apenas as poltronas vazias, em ordem. Duas, próximas à estante do computador e um amontoado de livros. Não parecia uma sala de estar. No passado, teria sido uma sala de se ficar junto, trabalhando, assistindo tv, revisando e-mails, ouvindo partituras, namorando, pensou Bárbara.
A mulher deu mais alguns passos e olhou para a peça posterior à sala, que ficava na mesma direção do quarto: uma sala espaçosa, emoldurada em espelhos e barras; esta completamente vazia e limpa. Ao quarto, ela não se atreveu a espiar.
Voltou-se para Bárbara, pediu que sentasse e fez o mesmo. Disse-lhe em português, misturando as duas línguas, que sabia o quanto era difícil a situação que Bárbara enfrentava, mas como administradora dos prédios, sentia-se na obrigação de ajudá-la.
Bárbara a olhava e balançava a cabeça, desapontada. Precisava dizer alguma coisa, mas nada tinha a dizer. A vida tinha se ocupado de extravasar todo o conteúdo. Não tinha energia para reagir. Apenas fitava aquela mulher estranha com o lenço vermelho amarrado ao pescoço. Os olhos verdes, grandes, o nariz adunco, a boca espaçosa de lábios grossos. O pescoço limitado aos nós do lenço, desvendando apenas pequenos vãos muitos claros. O corpo ia se alongando como um cone, os seios não muito grandes, mas a cintura desaparecia na barriga obesa, que acompanhava as pernas, envoltas em meias pretas que desciam aos sapatos baixos. O vestido num estampado em azul-marinho e branco, caía-lhe aos joelhos.
Era só o que Bárbara via, como se o mundo se resumisse naquele quadro empastelado a sua frente. Só se deu conta do que se tratava, quando a mulher perguntou o que ela faria de sua vida. Como assim, o que fazer de sua vida? Tudo era um caos, um caos inesperado da noite para o dia. O que significava aquela pergunta.
Mas a mulher havia sido clara, ao dizer que na situação em que se encontrava, o melhor era dividir o apartamento com outra pessoa, porque na verdade, havia muita procura por aqueles prédios populares, e a escassez de recursos era grande na situação em que se encontravam os povos das regiões vizinhas. Países que estavam tendo regiões desmembradas, desemprego, procura de oportunidades. Minsk era uma cidade em evolução. As indústrias estão crescendo muito, com a produção de tratores, caminhões, geladeiras, bicicletas. Eles sempre foram um povo solidário. Se um irmão precisava de um lugar para ficar, seria acolhido. Ela precisava decidir o que fazer de sua vida.
Bárbara não a ouviu mais e se ouviu, não entendeu. Seus olhos branquearam tanto quanto os lábios, que foram perdendo a cor e o viço. Sentiu os móveis girarem, as poltronas com a mulher e tudo, como se estivessem num enorme carrossel. Só ouviu o grito de senhora, senhora, desta vez, em russo genuíno e não mais acordou.
Agora, estas imagens vinham-lhe à tona, tão nítidas e reais, como se acontecessem agora, neste momento. Voltar ao Brasil, sem ser esperada, sabendo que ninguém a esperaria no aeroporto, que os seus únicos parentes eram as freiras do convento e os empregados que compartilhavam com ela os seus momentos de solidão, e a estas alturas, já nem eram os mesmos e as freiras que restavam daquela época, certamente nem pensavam em seu retorno. Talvez poucas a reconhecessem.
Irmã Dolores, a sua verdadeira amiga, que embora pouco se falassem, sabia que estaria sempre ao seu lado. Mas como voltar assim, sem avisar, apesar de que as freiras não tinham nenhum compromisso com ela. Já lhes deram casa, comida, conhecimento. Na verdade, sentia-se atraída em procurá-las. Não certamente no primeiro dia, nem no segundo. Esta sensação de não ter família, de não se sentir apoiada, aumentava ainda mais a enorme dor que sentia. Uma dor sem fim. Quando o avião pousou, respirou fundo e pisou firme, sentindo que seu destino mudara definitivamente.
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