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Contratempos num passeio de bicicleta na praia


Não sou muito bom em tarefas manuais. Não tenho as habilidades básicas, nem para trocar o cartucho na impressora, mexer com parafusos ou arrumar a correia da bicicleta. Não é meu jeito, que fazer. Tenho outras habilidades, graças a Deus. Mas devido a esta falta de jeito, muitas vezes, passo por perrengues nada agradáveis. Outro dia, ao entardecer, estava passeando de bicicleta pela praia, um fim de tarde lindo, o sol se pondo e as águas translúcidas pela pouca luz que restava. Dava gosto de ver. Fui indo, com o vento a favor, em direção à barra e nem me dei conta que a noite chegava rapidamente. Resolvi voltar e de repente, a correia da bicicleta travou. Na verdade, deslocou-se das engrenagens da coroa da pedivela (rodas denteadas, pesquisei) e a catraca da roda traseira.  Então, virei a bicicleta e tentei recolocá-la, sem nenhum sucesso. Engraxei as mãos, tingi as unhas e os dedos, mas tudo o que fazia, aumentava mais o enredo que se formava. Quanto mais tentava resgatar o emaranhado, mais se embaraçava a correia e a coisa ficava pior. Não tinha jeito. Enredava mais e mais. Por vezes, a coisa quase se acertava. Olhava detidamente tentando descobrir o imenso quebra-cabeças que se formava. Puxei com cuidado uma parte da corrente que me parecia mais solta, mas para minha surpresa, ela se engatava de um lado e se soltava do outro, formando umas argolas difíceis de desmanchar. Sentei-me no chão, emoldurando o calção de areia, molhado que estava da praia, pois havia tomado um banho rápido antes. Tentei desta vez, fazer uma limpeza, sem ter qualquer instrumento adequado, a não ser minhas próprias mãos. Encontrei uma espécie de taquara, acho que era isso, talvez de pandorga ( ainda utilizam taquara nas pandorgas, como no meu tempo?) e investi decidido na limpeza da areia molhada que se acumulava entre os dentes. Quem sabe assim, ficava mais fácil de colocar a engrenagem em ordem. Pura ilusão, cada vez que eu tentava engatar uma parte, a outra se destrambelhava toda, tornando tudo um caos. Comecei a pensar que deveria seguir em frente, a pé. Levantei-me, cheio de areia, os chinelos transbordando lama, por ter passado no riacho, produzindo rápido a mistura que os deixava praticamente fora de uso. Mas não havia alternativa. A noite se aproximava, as pessoas rareavam cada vez mais e eu precisava tomar uma atitude, ou seja, a única viável para aquele momento insólito: voltar para casa com a bicicleta a cabresto. Fiquei tanto tempo envolvido com aquela tarefa sem resultado, que a noite chegou rapidamente e com ela, o vento que se intensificava, me empurrando para a direção oposta. Tinha a impressão que estava num deserto, com ondas de areia que se formavam ante meus pés como nuvens brancas, que se misturavam céleres com as pequenas lagoas que atravessava, voando na direção das dunas. Assim é o Cassino, quando o tempo muda. Ao longe, observava na luz tênue, os cata-ventos que se espraiavam na névoa e uma nuvem escura se afunilava no céu, ameaçadora, anunciando uma tempestade que talvez surgisse a qualquer momento. Sentia o vento fustigar meu tórax sem camisa e um frio inesperado me atingia, nem sei se pela influência da natureza ou pela ansiedade que se intensificava. Não era nada assustador, daqui a pouco estaria em casa, talvez 40 minutos ou 1 hora de caminhada, nada demais. Mas o cansaço e a luta embrenhada contra o vento produziam a atmosfera necessária para o medo. Entretanto, nem tudo parecia perdido, apesar da minha inabilidade em consertar coisas ou fazer trabalhos manuais, havia a possibilidade de ajuda de alguém. Quem sabe alguém que viesse num dos carros que vez que outra passavam por mim, quem sabe um deles pararia e me ajudasse. Ou mesmo o caminhão da limpeza, que imaginava que passasse àquela hora na praia. Por outro lado, conjecturava que eles nem pensariam em parar, afinal, a noite se aproximava, o tempo estava ruim, o vento forte e eu poderia ser um marginal que oferecesse algum perigo. Por certo, não parariam. Ninguém me ajudaria àquele hora. Mas meus pensamentos se dissiparam como gelo na água. Foi de repente que aconteceu e nem tive tempo de refletir. Avistei um rapaz de bicicleta, não conseguia visualizar bem, mas sabia que era alguém numa bicicleta e que certamente poderia  me ajudar. Chamei-o e ele, por um momento, me fitou, talvez pensando no que eu queria. Insisti, explicando que não conseguia arrumar a correia. Acho que ele imediatamente compreendeu o meu desespero, pois prontamente aproximou-se e já deu dicas, além de começar a destravar a correia. Eu posicionara a bicicleta com as rodas para cima, o que ele refutou como um método equivocado. O correto seria deixá-la na posição normal, apenas levantando-a um pouco e mexendo na roda de trás. Ele cuidadosamente acionou as engrenagens de modo a  se juntarem à correia, ajustando-as completamente, primeiramente a parte que fica na roda traseira, em seguida, limitou-se a arrumar a coroa nos pedais. Foi aos poucos, colocando-a no lugar e informando como deveria proceder, visto que havia uma distorção na roda de trás, que deveria ser consertada. Não sabia como agradecer-lhe, inclusive pedi desculpas por ter-lhe interrompido a caminhada. Para ele, não houve problemas. É o tipo de pessoa que faz questão de prestar auxílio com a maior disponibilidade, foi o que pude perceber. Afastou-se ouvindo ainda os meus agradecimentos. Seguiu o seu caminho e eu, o meu. Estava leve, aliviado, problema resolvido. Foi tão fácil pra ele. Tão difícil pra mim. Fiquei então, pensando, que ainda há pessoas que fazem gentilezas, que ajudam a quem precisa, de modo despretensioso, apenas com o desejo de cumprir uma boa ação. Provavelmente, nem tem esta consciência, mas lhes é próprio esta faculdade. Ele me salvou de uma situação difícil e levou consigo uma leveza de alma, que certamente deve ter sentido, pela ajuda que prestou. Realmente não tenho habilidades motoras, meu habitat é a escrita, e por isso, descrevo a sensibilidade da ajuda de outrem. Ainda há tempo pra gentileza. Isso é muito bom. Alvissareiro.

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