Sair à procura de algo que não se sabe, muitas vezes do que se trata: uma viagem no pequeno diário, um caderno colorido, de páginas desenhadas, margens de arabescos ou uma caneta especial, de ponta fina, da marca tal, que tinha na loja tal, naquela livraria onde compraste o teu livro. Quase sempre assim, exigente, disciplinada, austera para a idade, com atitudes impensadas para os mais velhos. Era assim, mandona, talvez autoritária, uma espécie de Mônica, amiga do Cebolinha, ou a Mônica forçuda, como a chamavam, os mais destemperados. Tinha sempre um argumento na ponta da língua, afiada, ferina, mas amiga, afetuosa e sincera. Por vezes, deixava-se levar pela ilusão e fantasia: tinha um cão imaginário, o mar, a lagoa, as árvores da praça eram entidades com vida própria (e atitudes), às quais costumava cumprimentar, relacionar-se e compartilhar com a natureza, como se suas histórias fossem tão presentes e atuais, que fizessem parte do seu cotidiano, não apenas de seu imaginário. Não sofria nenhum desses males da mente: ao contrário, era de uma lucidez e entendimento da vida inabalável, mas sabia cultivar o sonho, a beleza de viver, pelo menos por alguns momentos, a liberdade que só os que alimentam suas mentes com a grandeza da ilusão, apreedem. Por fim, esta fantasia se desenvolvia nas leituras que se acumulavam em dezenas de livros que costumava dissecar, tentando encontrar um sentido em cada tema, em cada trama, em cada conflito. Talvez, eu tenha grande parcela de culpa nesta maneira de ver o mundo, que aos poucos se solidificou e a fez, tenho certeza, fugir do senso comum, do mundo padronizado, das verdades absolutas e enfrentar a vida de frente. Talvez a tenha induzido, não sei se seria a palavra certa, a encontrar outros caminhos e principalmente através da leitura, e, enquanto criança, na possibilidade deste encontro com a natureza, de cultivar o amor pelas pessoas, pelo mar, pelos animais, mesmo que imaginários e cumprimentar a todos, como se cumprimenta e se deseja um bom dia, quando amanhece e se vai ao trabalho, ou no caso, para a escola. Até mesmo o sol era saudado, no caminho para a aula. Eram coisas nossas, de pai e filha, uma certa cumplicidade que me deixava feliz. Este processo se complementava também através das histórias infantis, nas quais nem sempre o vilão era o mau, ou a princesa era a protagonista. Muitas vezes, o lobo mau era um pobre coitado, perseguido por um lenhador antiecológico, acuado por uma menina egoísta, acobertada por uma velha que se fazia de doente. É, talvez assim, ela tenha conhecido a diversidade da vida e introjetado que nem todo ser é integralmente bom ou mau, que esta dicotomia do mocinho e do vilão só leva a criar rótulos, e por aí vão tantos conceitos e preconceitos que não levam a nada.
Ah, teve o balé com sua disciplina intensa, além das leituras e estávamos sempre ao seu lado, mesmo nos primeiros passos, nos primeiros bailados, o que para nós significava passos de primeira bailarina do Muncipal. E tudo seguindo seu trajeto: a escola, o cursinho para o vestibular, a vitória para o curso de medicina e dai por diante.
Pois, esta é Clarissa. Acho que ainda tem um pouco de bailarina, de leitora incansável, de fantasia, até mesmo de Monica forçuda. Mas tem o discernimento da vida em suas atitudes e relacionamentos com os amigos ou com as pessoas que encontra no dia a dia; tem a sensatez das escolhas, tem as atitudes nas quais valoriza o afeto, o sentimento, o carinho, a verdade, o amor às causas nobres, a certeza dos que sabem aprender com as adversidades e tomar fôlego para seguir em frente. Esta é minha filha. Hoje, uma doutoranda do 5º ano, amanhã, uma médica.
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